
Jornal colaborativo, não-oficial e democrático da República Independente de Laranjeiras
Edição # 13
Ficar com o problema
A jornalista e vizinha Amélia Gonzalez escreve sobre a sabedoria das árvores e o que elas podem nos
ensinar nesse momento em que os males que fizemos ao planeta nos colocam em risco de extinção.
Não há um só dia que eu passe por ali sem me encantar. Aquela senhora Figueira, de tronco forte, torcido, enfeitada com um monte de balõezinhos feitos artesanalmente, todos coloridos, e uma casa de árvore em miniatura, amarela, vermelha, com florinhas. Quando passo apressada, só dou uma olhada de esguelha, uma espécie de reconhecimento, tipo... “Volto já, torce por mim, para dar tudo certo!” Quando estou a caminhar calmamente com Beto, o Shihtzu que me aceitou, consigo parar, às vezes do outro lado da calçada. Respiro diante do belo e penso: “Esse Maya Café é mesmo um presente aqui para a rua”.
Outro dia pensei em comer uma proteína animal, coisa que também faço de vez em quando. Veio o desejo da carne assada bem desfiadinha que o Maya põe no meio de um pão australiano, coberta com uma camada de queijo. Fica uma delícia a mistura de doce com salgado. E como é bom ter um desejo realizável. Sentei-me, fiz o pedido, e já na primeira garfada Ricardo Linck se aproxima, me vê, faz uma festa e se senta para esticar uma prosa.
Somos companheiros de profissão. E eu soube disso de maneira até engraçada: dezoito anos atrás, o Maya estava recém-aberto, entrei lá, olhei para o Ricardo e perguntei: “Te conheço de onde?” Claro, ele era repórter de tevê, estava todo dia nas telas até bem pouco tempo. Trocamos figurinhas e surgiu entre nós uma parceria boa, que só jornalistas conseguem reconhecer.
Sentados sob o sol fraquinho de inverno, eu degustando aquela delícia, conversamos sobre parcerias, colegas de profissão, desfiamos novelos de histórias de pais e mães. Ele me contou sobre a obra que acabou de fazer no Maya, eu me lembrei, com desgosto, o quanto investi em recuperar uma velha casa e
fazer um restaurante... que me levou à falência.
E como as palavras são como macacos pulando de galho em galho – adoro essa definição de Robert Musil – em algum momento nossa conversa se voltou para a senhora Figueira. Desfiei toda a minha admiração pelo excelente trabalho que ele fez, cuidando daquele ser tão majestoso. E lembrei-me de Donna Haraway, autora de “Ficar com o problema – fazer parentes no Chthluceno”, um dos meus livros de cabeceira. Haraway tem sido uma luz que ilumina meus pensamentos febris sobre as mudanças climáticas, tema que abraço. Justamente porque a solução que ela aponta pode ser uma não-solução ao senso comum.
Ficar com o problema é não ter angústia com o futuro, é estar presente (se me permitem resumir tanto). Nossos parentes do reino vegetal não têm pernas nem braços. Não podem fugir dos problemas, nem matá-los. Donna Haraway resume assim em seu livro, que recomendo: “Ficar com o problema requer aprender estar verdadeiramente presente, não como um eixo que se desvanece entre passados terríveis ou edênicos e entre futuros apocalípticos ou salvadores – mas como bichos mortais entrelaçados em uma miríade de configurações inacabadas de lugares, tempos, matérias, significados”.
Olhando para aquele tronco potente e lindo de dona Figueira, dá para imaginar quantos seres vivem ali, bem perto. E respeitá-los. Sentimento pouco presente hoje no mundo de telas e bombas e de patifes que se tomam por líderes.
Mas ali, naquele cantinho de mundo, e por breves instantes que se tomam por vida inteira, pudemos desfrutar de boa comida, boa conversa, boa troca, tudo o que podemos viver com o mínimo de desrespeito (penso na proteína animal). Humanos demasiado, sendo apenas humanos. A vida tinha que ser assim sempre, né? E é tão simples.
* Amélia Gonzalez é jornalista, autora do livro “Ser Sustentável” e do blog de mesmo nome.
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