
Jornal colaborativo, não-oficial e democrático da República Independente de Laranjeiras
Edição # 13
Uma certa casa de bonecas
Romance noir de Roberto Muggiati
O capítulo anterior traça um perfil da complexa personalidade de Odete. O delegado Godofredo elabora fantasias mirabolantes sobre a sexualidade da dona do Café Azteca. Vai se revelando o apego dela pela funcionária Maria Clara, namorada de João - o clarinetista assassinado que sobreviveu ao crime. Por onde anda João, afinal? E Maria Clara? Irá o delegado desvendar o crime? O autor pede desculpas à leitora apressada e curiosa pelo desfecho mas é preciso regressar e incluir nova personagem na trama.
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Mistério na Glicério # 6
Meses antes da tentativa de homicídio que sofreria, João começou a se sentir cada vez mais distante de Maria. Seu gosto pelas emoções baratas, as recaídas infantilóides, o silêncio como simulacro de sabedoria o irritavam. Mas talvez estivesse apenas descontando em Maria o incômodo causado pelos ventos de mau agouro que o assolavam. Foi quando o destino o brindou com o amor de uma mulher mais madura, um regaço acolhedor para o repouso do guerreiro – ela mesma carente de um ombro
amigo para chorar.
Um dia, já na casa dos quarenta, Lizandra acordou se sentindo a mulher mais infeliz do mundo.
Ao casar, baixou o status de normalista para o que então se chamava “prendas domésticas”. O marido, jovem ambicioso, logo ascendeu de bancário a banqueiro. Frio e calculista nos negócios, mantinha um estranhamento sepulcral com a família – mulher, dois filhos, uma filha. Workaholic, ele sucumbiu a apenas uma paixão, a glutonice. Viagem sem retorno rumo ao violento AVC que, num golpe de foice, o privaria de todo e qualquer movimento. Coberto pelo melhor melhor plano de saúde, passou a contar com uma UTI domiciliar completa e atendimento de enfermeiras, fisioterapeutas e cuidadoras.
Já que o patrimônio do banqueiro estava todo no seu nome, a mulher sobrevivia com uma conta conjunta de retirada mensal restrita. Seu lazer e se limitava à leitura de romances feministas e filmes na TV por assinatura. Um deles a interessou em particular, O escafandro e a borboleta, baseado numa história verídica. Jean Dominique Bauby, jornalista francês de sucesso, sofre
um AVC e desenvolve a síndrome do encarceramento: só consegue mover o olho esquerdo. Com esse escasso recurso ele consegue criar um código de comunicação por meio de piscadelas: uma pestanejada para a letra A, duas para o E, três para o I e assim por diante. Lisandra pensou que o marido,
com os dois olhos ativos, talvez pudesse usar aquele expediente para transferir propriedades para ela e os filhos, mas a má vontade que lhe era inerente e a rigidez dos protocolos imobiliários a fizeram ver que era impossível.
Um sábado, na feira da General Glicério, foi atraída à Praça do Choro pela clarineta melíflua que tocava Carinhoso. Um sopro de sentimento adormecido desde a adolescência repassou-lhe pelo corpo no momento exato em que cruzava longamente o olhar com o chorão. Lizandra e João tornaram-se amantes. Seus encontros furtivos aconteciam na calada da noite na inocente casinha de bonecas do playground do condomínio dela. Até tudo acabar de repente quando João caiu morto na Praça do Choro.