top of page

Comprando poetas

Quadrado site (3).jpg

Editora Dublinense

91 páginas (ou uma hora

zapeando o instagram)

Preço médio: R$ 60

Priorize livrarias de rua

Imagine um mundo onde, em vez de adotar um cachorro ou um gato, as pessoas adotam... poetas! Isso mesmo. Criaturas de cabelo desgrenhado, olhar perdido e zero utilidade prática — pelo menos é o que pensam os habitantes desta sociedade obcecada por produtividade e tabelas Excel.

No mundo criado pelo autor português Afonso Cruz tudo é calculado: amor, refeições, tempo no banheiro e até número de abraços por semana. A estética é descartável, as pessoas são números, a arte é inútil, e “liberdade poética” é praticamente uma ofensa à lógica. Mas aí a protagonista da história levanta um dia da mesa do jantar e declara aos pais:

- Gostava de ter um poeta. Podemos comprar um?

Sim, podem. Vão à loja e escolhem um entre tantos: “...baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e dois por cento, carecas, e sessenta e oito por cento de barba”. O poeta ganha uma cama na casa, embaixo da escada, uma mesa, cadernos e canetas. E logo começa uma pequena grande revolução com suas frases desconexas e a mania irritante de pensar por conta própria.

Poderia dizer que essa fábula moderna cria um cenário absurdo que mistura crítica social com nonsense, mas não direi. Nossa sociedade consegue ser mais absurda e mais nonsense, principalmente no que tange a poesia. Afinal, o que não falta é cachorro passeando na rua, mas os livros de poesia esperam, empoeirados, por seus leitores. Em tempo: nada contra os cachorros. Adote cachorros e leia poesia.

​

* Anna Luíza Guimarães é jornalista e mora em Laranjeiras. 

​

Abaixo, um trecho do livro: 

​

  "Levei as minhas melhores amigas lá a casa para verem o meu poeta.

A 76C levava uma saia patrocinada por uma célebre empresa de massagens. Tinha pintado as unhas da

mão de amarelo e o cabelo estava preso na nuca com três ganchos de plástico castanho. A E60 calçava calças de ganga, patrocínio de um resort oriental. Ao verem o poeta, sussurraram qualquer coisa entre elas. A E60 apontou para a frase escrita na parede.

   Sujou a parede. Pensava que só os pintores eram assim.

   Assim, como?, perguntou a 76C.

   Como os artistas, que sujam muito.

   Para que é que servem?

   Os artistas?

   Sim.

   Para nada. São inutilistas.

   O que é que este poeta faz?

   Poemas, respondi eu.

   Para que servem?

   Para muitas coisas. Há poemas que servem para

ver o mar.

Elas olharam para mim, os olhos muito arregalados."​​

Quadrado site (4).jpg
Afonso Cruz, escritor português
bottom of page