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Afinal, onde vivemos?

O arquiteto e cidadão de Laranjeiras Mauro Bitar nos ajuda a pensar sobre as dimensões reais da nossa república, a partir de um conceito do poeta e ecologista estado-unidense Gary Snider. Para ele, as pessoas moram dentro de uma bacia hidrográfica, ainda que não percebam. “É todo um ecossistema, onde vivemos uma cultura particular, uma comunidade.” Confira abaixo.

   Em 1970, quando eu era só ‘um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones’ e me preparava para fazer as provas para a faculdade de Arquitetura, fui assistir a uma palestra de Carlos Nelson* no MAM, onde ele falaria sobre seu trabalho em Brás de Pina. A primeira coisa que ele falou foi: a mim interessa o morar. Aquilo me impressionou muito. Esta frase me guiou pelos próximos cinquenta anos no meu trabalho como arquiteto.

     Talvez devido a meu temperamento introvertido, morar, para mim, significava morar no apartamento onde moramos, na minha toca, no máximo no nosso prédio, talvez um pouco na nossa rua. Sei que também moramos no nosso bairro, na nossa cidade etc... ou no próprio cosmos... Mas tudo isso era, para mim, coletivo demais, ou abstrato demais. 

     Uns vinte e poucos anos depois da palestra do Carlos Nelson, desci de um ônibus na avenida Madison, em Nova York, onde entrei em uma livrariazinha charmosa bem em frente ao ponto do ônibus. Perguntei se tinham o Dharma Bums. O moço retirou da estante atrás do balcão um exemplar, fazendo uma cara simpática, e me entregou, uma edição de bolso que ainda tenho aqui na minha estante, já meio velhinha... Era o meu presente para mim mesmo como uma lembrança da viagem.

     Eu já tinha lido um ou outro livro do Jack Kerouac, e estava interessado neste livro, de sua fase budista (seu amigo Allen Ginsberg o chamava, carinhosamente, o Bêbado Buda do Coração de Jesus). Ele tinha trinta e poucos anos e foi, partindo do México, para São Francisco, onde estava Ginsberg. Ficou hospedado na cabana do Gary Snyder, vinte e poucos anos, que aguardava o navio cargueiro

que o levaria ao Japão, onde passaria um ano em um mosteiro Zen. Conversam sobre poesia chinesa e budismo, bebem vinho, escalam uma montanha.

     Ficou para mim a curiosidade de conhecer o trabalho de Gary Snyder. Anos depois consegui encomendar dois livros dele, com poemas e ensaios. Os ensaios me interessaram mais (achei os poemas muito palavrosos) e um deles se tornou muito importante para mim, Coming into the Watershed, no livro A Place in Space, onde ele diz que em cada watershed, que traduzo como ‘bacia hidrográfica’, existe todo um ecossistema onde vivemos uma cultura particular, uma comunidade. Diz ainda que o fluir das águas

em seu caminho, sempre para baixo, esculpindo a terra, define um lugar com fronteiras que, embora sutilmente sempre mudando, são inquestionáveis. Essa leitura completou a percepção do meu morar, a percepção do território natural da minha toca.

     Um outro texto dele veio enriquecer essa minha percepção do nosso vale, uma palestra que ele fez em 1994, na Naropa University, comentando as pinturas chinesas que retratam montanhas e rios. Ele diz, a partir do budismo, que as montanhas representam a energia ascética, o distanciamento iogue, e os rios, a doação da compaixão irrigando o mundo.

     Subo o vale. Já no Cosme Velho, aos pés do morro do Corcovado, de um bueiro no asfalto vem o barulho forte do rio Carioca sob a rua. Ele está lá, em seu caminho para o mar, na praia do Flamengo, dando forma ao nosso lugar, irrigando compaixão... P.S. Às vezes entro na internet para ver se o Gary Snyder continua por aqui, entre nós. No momento em que escrevo, parece que continua firme   

 

* Carlos Nelson Ferreira dos Santos, 1943-1989. Foi arquiteto, urbanista, professor universitário e antropólogo.

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Livro Os

Vagabundos

do Dharma, de 

Jack Kerouac.

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